Serie De Ficção Cientifica Brasileira: A nossa vida é repleta de magia quando entendemos, e unimos a nossa sincronicidade com o todo. “A Harpa Sagrada” inicia-se numa serie de revelações onde o homem tem sua essência cravada no sagrado, e o olhar no cosmos aspirando sua perfeição.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Nazismo no interior de S.Paulo


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Brasil, interior de São Paulo, entre a suástica e a palmatória:
A descoberta de um tropeiro permaneceu como peça solta de um quebra-cabeça complexo até 1998, quando a enteada de Tatão, Suzane, durante uma aula sobre a Segunda Guerra Mundial, reconheceu, nas imagens do livro didático, a marca encontrada nos tijolos de sua fazenda, e avisou ao professor. O historiador Sidney Aguilar Filho, que trabalhava na cidade de São Roque, a 160 quilômetros da fazenda, não acreditou na história da menina. Foi preciso que ela levasse o material na aula seguinte para que ele iniciasse uma investigação. Esta durou dez anos e culminou na tese de doutorado “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”, defendida na Unicamp em 2011. 
Edição e imagens:  Thoth3126@gmail.com
Nos anos 1930, órfãos eram escravizados em fazenda no interior de São Paulo por simpatizantes do nazismo
Alice Melo
Uma briga de porcos derrubou a primeira barreira que encobria uma história existente apenas nas lembranças de velhos personagens. O obstáculo rompido nos idos da década de 1990 era a parede gasta de um chiqueiro imundo que outrora fora habitado por empregados de uma fazenda localizada no município de Paranapanema, interior de São Paulo. A Cruzeiro do Sul, que hoje beira os 72 hectares de terra. Na ocasião, quem tentava conter os suínos em sua disparada era Tatão, então proprietário das terras, e seu empregado, Aparecido. A dupla falhou ao apartar a rixa; os bichos abriram um buraco na parede e escaparam rumo ao capinzal numa corrida ensurdecedora. Aparecido seguiu os porcos para evitar prejuízo, mas Tatão permaneceu atônito no chiqueiro destruído. Os tijolos maciços caídos no chão, antes encobertos pela argamassa, revelaram ao homem a marca inconfundível, cravada no centro de um losango: a suástica nazista.
“Eu chamei: hômi, volta aqui, hômi, vem ver isso”, lembra Tatão – apelido de José Ricardo Rosa – fixando os olhos verdes no horizonte, entre uma e outra baforada no seu tradicional cigarro de palha. “Quando ele chegou, eu mostrei a marca pra ele. Ele me disse que era a marca do tijolo. Eu falei: como assim? É a marca da Alemanha! E ele disse que não, era a marca do tijolo. Por anos, eu fui ridicularizado na cidade. Ninguém desconfiava que aquele tijolo, com aquela marca, era a prova de que existiu, naquela fazenda, uma filosofia nazista no passado.”
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Tatão (José Ricardo Rosa) folheia livro de fotos de Sergio R. Miranda, antigo proprietário da fazenda Cruzeiro do Sul. Crédito: Phillipe Noguchi
A descoberta do tropeiro permaneceu como peça solta de um quebra-cabeça complexo até 1998, quando a enteada de Tatão, Suzane, durante uma aula sobre a Segunda Guerra Mundial, reconheceu, nas imagens do livro didático, a marca encontrada nos tijolos de sua fazenda, e avisou ao professor. O historiador Sidney Aguilar Filho, que trabalhava na cidade de São Roque, a 160 quilômetros da fazenda, não acreditou na história da menina. Foi preciso que ela levasse o material na aula seguinte para que ele iniciasse uma investigação. Esta durou dez anos e culminou na tese de doutorado “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”, defendida na Unicamp em 2011. Com aquele objeto em mãos, o pesquisador rumou à região e se instalou no município vizinho, Campina do Monte Alegre, ou Campininha – cidade hoje com 5 mil habitantes. Lá, teceu os primeiros fios de uma teia tortuosa de significados. Em meio a polêmicas, a teia liga a simbologia nazista presente na propriedade rural a um contexto de simpatia a ideais de racismo e autoritarismo no Brasil das décadas de 1930 e 1940.
Entrevistando moradores antigos da cidade e revirando arquivos Brasil adentro, Aguilar Filho se deparou com um caso tão curioso quanto o dos tijolos marcados com a suástica: a escravização de 50 garotos órfãos, na maioria negros, numa propriedade rural vizinha. A Fazenda Santa Albertina, com extensão estimada em quase 4 mil hectares de terra. Para sua surpresa, descobriu que tanto a Santa Albertina quanto a Cruzeiro do Sul pertenciam à mesma família no passado: Rocha Miranda. Família tradicional, cujos membros viviam no Rio de Janeiro há gerações, mas mantinham quatro propriedades rurais no interior de São Paulo. Osvaldo, Otávio, Sérgio e Renato Rocha Miranda repartiram as terras do pai, Luís, depois que ele faleceu, em 1915. O caso ilustra, na prática, o ideário eugênico relacionado principalmente à educação por meio do trabalho que permeava o país naquele momento.  
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Ele me disse que era a marca do tijolo. Eu falei: como assim? É a marca da Alemanha! E ele disse que não, era a marca do tijolo. Por anos, eu fui ridicularizado na cidade. Ninguém desconfiava que aquele tijolo, com aquela marca, era a prova de que existiu, naquela fazenda, uma filosofia nazista no passado.”
Ao que tudo indica, Osvaldo Rocha Miranda, ex-proprietário da Santa Albertina, um dos “benfeitores” do orfanato masculino carioca Romão de Mattos Duarte, que pertence até hoje à Irmandade de Misericórdia, no Rio de Janeiro, escolhia as crianças pessoalmente e as retirava para trabalhar em suas terras sob um contrato de tutelato. O documento tinha o aval tanto do juiz de menores da época quanto da madre superiora da instituição. Os meninos que não fugiram ou morreram permaneceram na localidade entre 1933 e 1945. Nunca receberam salário e, por vezes, eram submetidos a castigos corporais. Trabalhavam na lavoura junto aos adultos. Não tinham nomes, eram chamados por números, e permaneciam sob vigilância constante de um capataz. Este levava consigo instrumentos para castigar fisicamente os meninos e andava sempre acompanhado de dois cães pastores-alemães adestrados: Fiança e Veneno.
A ligação entre as fazendas Cruzeiro do Sul e Santa Albertina, além de familiar, é ideológica. Por mais que as histórias sejam distintas, elas se cruzam em determinados pontos. Os irmãos eram simpáticos à ideologia autoritária: Sérgio Rocha Miranda marcava com a suástica tijolos da estrutura de todas as construções da fazenda, o lombo do gado de exposição, a bandeira da propriedade, que era erguida no mastro, ao lado das bandeiras do Estado de São Paulo e do Brasil. Já o irmão Osvaldo era membro da Câmara dos Quarenta da Ação Integralista Brasileira, com outros dois irmãos, também proprietários de terras na mesma região. Em sua fazenda, os órfãos, mesmo sem ter sapatos, recebiam uniforme de cor verde, engomado, contendo o sigma integralista na braçadeira e no chapéu, para ir a festas nos fins de semana na cocheira da fazenda Cruzeiro do Sul. Os moradores da Santa Albertina, segundo relatos de pessoas que viveram ali, se cumprimentavam gritando “Anauê”, com a mão erguida acima da cabeça.
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Um boi premiado e ficha de documentação de gado da Fazenda Cruzeiro do Sul no final da década de 30, ambos marcados com a suástica nazista.
A história, além de aparecer em vestígios deixados em documentação da época, como o livro de entrada e saída de órfãos no educandário, está ativa na memória de seu Aloísio Silva. Durante décadas, ele foi chamado de “Vinte e Três”. Seu Aloísio tem 89 anos, mora em Campininha. Nesta cidade, morou a maior parte dos órfãos que, de um dia para o outro, foram “liberados”, de acordo com o termo usado por seu Aloísio. Com a doença e posterior morte de Osvaldo Rocha Miranda, em 1945 – período que coincide com a derrocada dos ideários autoritários no Brasil e, principalmente, na Alemanha nazista, país com o qual os Rocha Miranda mantinham relações comerciais estreitas –, o jovem herdeiro, Renato Rocha Miranda Filho (sobrinho de Osvaldo e Sérgio, que morreram solteiros, sem deixar filhos) liberou o grupo, agora já adulto. Sem rumo ou qualquer dinheiro, alguns ficaram pela região e voltaram a trabalhar para a família, como Aloísio e os falecidos José Alves de Almeida, o “Dois”, e Roque. Outros tentaram a sorte longe dali, muitos morreram no caminho.
Em um primeiro encontro, seu Aloísio pode parecer um homem de poucas palavras. As rugas profundas na face e as mãos ainda calejadas mostram o passado de muito trabalho debaixo de sol quente. Na fazenda, quando pequeno, cuidava dos animais, penteava a crina dos cavalos, capinava. Hoje em dia, seu Aloísio vai ao baile da terceira idade todo domingo. Não bebe, tampouco fuma. Nem sempre foi assim, era homem brabo, chegado à pinga – as pessoas da região o chamavam, à época, de “Nego Bêbo”. Com o tempo e a curiosidade do povo, ele ganhou amigos para conversar. A memória antes soterrada pelos anos passou a ser pulsante, e hoje ele já consegue falar da infância com tranquilidade. Se no passado era “Nego Bêbo”, agora Aloísio Silva é respeitado na cidade. Ele se diz revoltado, injustiçado. Reclama que, ao ter sido tirado do Rio de Janeiro, naquele 16 de novembro de 1933, todas as chances de conhecer sua mãe foram por água abaixo. Só soube o nome dela, Maria Augusta, depois que o professor Sidney lhe mostrou a documentação encontrada no arquivo do educandário. Certidão de nascimento mesmo, os meninos não tinham. Seu Aloísio acha que foram queimadas quando eles chegaram à fazenda, já que, ao serem levados do Rio de Janeiro, cada um tinha o próprio registro de identidade.
A história contada por ele é rica em detalhes: a primeira leva de dez meninos do orfanato Romão Duarte foi escolhida a dedo por Osvaldo Rocha Miranda, com auxílio de seu motorista, André: “Ele recuou nós tudo num canto, no quintal de brincar. Aí colocou nós empilhado ali e ficou no passadiço em cima, com um saco de bala. Aí, de lá de cima, o major Osvaldo Rocha Miranda jogava um punhado de bala. E nós ia catar que nem galinha catando milho”, lembra com amargura. “Nós não sabia de nada… Então ele ia olhando e apontava com uma vara: André, põe esse pra lá, põe esse pra cá. Ele apartou dez da nossa turma. Na segunda vez que ele jogou as balas, nós já foi catar tudo com medo, assombrado, olhando pra cima. Nós não sabia o que ia fazer com nós. Depois que ele fez a escolha dele, falou: André, solta os outros”, conta. Os mais rápidos, espertos e fortes eram selecionados para o grupo da fazenda – critério muito semelhante ao utilizado para separar os prisioneiros que trabalhariam dos que morreriam nos campos de concentração nazistas, mantidos pelos alemães justamente no mesmo período.
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Vestindo seu habitual chapéu de feltro preto e calçando botinas de couro branco, Aloísio Silva
Vestindo seu habitual chapéu de feltro preto e calçando botinas de couro branco, Aloísio Silva revela, com momentos de silêncio profundo, que, depois de serem escolhidos, os meninos com idade entre 9 e 11 anos ficaram oito dias em estado de isolamento até serem levados por carros da polícia à estação de trem D. Pedro II, a Central do Brasil. A promessa era de uma vida boa no campo. Após pegar a maria-fumaça, os meninos foram até a estação Engenheiro Hermillo, em Campininha. “Quando chegamo  na fazenda, já tinha um tutor lá – um paraibano ruim, ruim mermo – para tomar conta de nós. Andava com uma vara de marmelo e uma palmatória com cinco furos na ponta, pra caso de nós desobedecesse. Era uma vida muito difícil aqui naquele tempo. A mão da gente chegava a sangra que a gente nem conseguia escreve na escola no dia seguinte”. Em dia de sol quente, ficavam com os pés escaldados, mas não eramos poupados da labuta.
Os 50 meninos foram em três levas para a Santa Albertina – entre 1933 e 1934. No primeiro ano, cursaram a quarta série na escola. Tinham aula com a professora Olívia, uma senhora muito boa que, “coitada, não podia fazer nada”, segundo seu Aloísio. Documentos redigidos por funcionários da delegacia de Itapetininga, na época, mostram que as fazendas do entorno também utilizavam o trabalho no campo como aliado à educação dos filhos de empregados. Mas, no caso dos órfãos do Romão Duarte, o esquema era diferente: eles permaneciam isolados dos demais moradores e só podiam deixar a propriedade acompanhados pelo capataz. Alguns meninos jogavam bola contra times da região, mas sempre vigiados.
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É década de 1930 no Brasil. Um time de futebol com jogadores negros ostenta uma bandeira com o Cruzeiro do Sul (também o nome da Fazenda) — e a suástica nazista.
Seu Carmo Gomes, morador de Campininha, hoje tem 78 anos. Ele era pequeno quando tudo aconteceu. Relata que assistia às partidas de futebol dos times das fazendas, gostava de ganhar doces comprados pelo vigia das crianças, que sempre pagava tudo em boró. “Dizem que eles não tinham salário, mas eu gosto até de esclarecer isso, porque tinha esse homão, o Icho, que ia na venda, e comprava pra nós gasosa (refrigerante), bala, rosca, doce. Comprava e pagava, mas pagava com um vale que tinha nome de boró. Naquele tempo, era o dinheiro da fazenda. Era o dinheiro que valia. Só tinha uma venda na cidade. Aí eles aceitavam o boró e depois trocavam por dinheiro no escritório”. Uma forma de disfarçar a escravidão: os vales, fora da região, não valiam nada.
Considerado o historiador de Campininha, seu Carmo conta a história das fazendas de maneira muito nostálgica. Ressalta, a todo o momento, o passado de alegria e felicidade, e como tudo era bonito e movimentado. “Nossa vida era muito alegre aqui, mesmo a dos meninos que vieram lá do Rio de Janeiro… Eu não sei a vida interna deles, porque eles não saíam muito, mas eles tinham o time de futebol, a escolinha, a banda…”. E conta que as crianças da Santa Albertina, nos fins de semana, iam às festas na Cruzeiro do Sul. Tocavam, faziam barulho para que os bois de raça – com nomes e devidamente registrados com documentos e certidões de nascimento, ao contrário das crianças – se acostumassem com multidões e não dessem trabalho nas competições, em feiras agropecuárias. “A gente via aqueles animais de raça, touro, cavalo, que iam para as exposições também, tudo com a marca da suástica no lombo, que nem o tijolo… A gente achava bonito, diferente”, relata.
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No interior do Paraná, à beira do Rio Iguaçu, vive Marujo, um senhor de quase 90 anos que já passou por altos e baixos na sua trajetória surpreendente. De escravo na fazenda, Argemiro dos Santos virou herói nacional: serviu à Marinha durante a Segunda Guerra Mundial.
Seu Carmo chegou a ser amigo de Renatinho, o Renato Rocha Miranda Filho, sobrinho de Osvaldo e Sérgio, herdeiro de suas fazendas, que também não se casou. Morreu solteiro e deixou as terras para dois sobrinhos e também para os filhos de um empregado que morava com ele, Manezinho, o primeiro marido de d. Senhorinha, a atual esposa de Tatão – o homem que encontrou os tijolos com o símbolo nazista. Os sobrinhos Rocha Miranda, vivos, moradores do Rio de Janeiro, não aceitaram dar entrevista até o fechamento desta reportagem. Eles estão consultando os advogados sobre o caso, porque discordam da história pesquisada por Aguilar Filho.
Uma descoberta recente, no entanto, só reforça a tese sobre a violência vivida pelos órfãos da Santa Albertina. No interior do Paraná, à beira do Rio Iguaçu, vive Marujo, um senhor de quase 90 anos que já passou por altos e baixos na sua trajetória surpreendente. De escravo na fazenda, Argemiro dos Santos virou herói nacional: serviu à Marinha durante a Segunda Guerra Mundial, venceu o inimigo trabalhando nas caldeiras de um navio e sobreviveu para contar a história – sua história. Foi também engraxate, mendigo, jogador de futebol, boxeador. Já adulto, acompanhava o carnaval nas ruas da “saudosa” Lapa, bebia, “corria atrás de um rabo de saia”. Toca trompete, ou pistom, como costuma dizer. Já fez parte de uma banda com integrantes da terceira idade embalando boleros, valsas e marchinhas de carnaval, tocando em aniversários e outras festas. Hoje, passa as tardes “tomando uma gelada” e contemplando o jardim na varanda de sua casa, ao lado da esposa, d. Guilhermina, com quem está casado há 61 anos.
Marujo deixou o tempo soterrar as lembranças de sua estada na Santa Albertina. Usou o trauma como força motriz de uma vida sofrida, sempre se superando, sem medo do que vinha pela frente. Nunca contou a história da infância para ninguém da família, que só soube do assunto há poucos meses, após a visita de Aguilar Filho e, recentemente, da Revista de HistóriaSeu Argemiro fugiu da fazenda quando tinha 13 anos: um belo dia, esperou a noite cair e deu no pé. Ninguém mais soube dele. “Eu falei pra mim: vou cair é fora desse negócio! Fui andando, peguei um caminhão até a estação Engenheiro Hermillo e fiquei lá escondido. Quando apareceu o trem, eu fui lá e, pum! Entrei e fui parar em Sorocaba. Aí fiquei ali engraxando. Era jornaleiro, dormia num banco na praça. Mas logo caí fora, pensando em jogar futebol. Eu era bom de bola. Fui pra São Paulo”. Na capital, ouvindo o programa de rádio “Repórter Esso”, soube que a Marinha precisava de voluntários para a guerra. “Aí eu falei: opa! Se é pra morrer, vou morrer na guerra! Morrer sendo engraxate?”. E foi assim que Argemiro Santos virou Marujo. Fixou-se pela primeira vez na vida em Foz do Iguaçu. Chegou lá como voluntário numa expedição da Marinha. Um olheiro de futebol o chamou para jogar no time local, ABC. Logo se apaixonou, casou escondido, constituiu família e teve três filhos.
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Os meninos permaneciam sob vigilância constante de um capataz. Este levava consigo instrumentos para castigar fisicamente os meninos e andava sempre acompanhado de dois cães pastores-alemães adestrados: Fiança e Veneno.
Na fazenda Santa Albertina, ele cuidava dos bichos e capinava. Lembra-se dos castigos com palmatória, do uniforme com marcas do integralismo que usava nos fins de semana e das festas na Cruzeiro do Sul, sempre regadas à cachaça. Confirma boa parte das lembranças narradas por Aloísio Silva. Conta com vivacidade sobre o cumprimento comum do dia a dia: “Anauê!”, grita ele esticando o braço. E explica: “Ah, isso era como bom dia. Bom dia! Anauê! Era assim que nós falava.” 
Apesar dos detalhes que vêm e vão à cabeça, seu Argemiro não se lembra de ser chamado por números, tampouco sabe o nome de qualquer funcionário da fazenda, criança ou adulto. Também nunca soube o nome da mãe. Tomou conhecimento disso só recentemente, quando descobriu que é mais velho do que pensava, pois foi deixado na roda dos enjeitados com 2 anos. Pelo menos é o que consta no registro das freiras do orfanato no dia 7 de abril de 1926, data em que comemora o nascimento.
“Quando ouço gente dizendo que sofreu, é porque não sabe pelo que eu passei. Tive uma vida muito dura antes de chegar aqui em Foz (do Iguaçu)”, lembra. Mas Marujo não se sente injustiçado e muito menos denomina o período na Santa Albertina como escravidão, assim como os moradores de Campininha.
“Nunca precisamos de nada.” Essa é a forma como d. Diva, nascida e criada em Campininha, que foi governanta na fazenda Santa Albertina, descreve sua situação trabalhista no passado. Mas dinheiro, ela não recebeu por muito tempo. Só foi receber salário no fim dos anos 1970, quando a administração mudou.
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Fazenda Santa Albertina hoje. Crédito: Philippe Noguchi
D. Diva é viúva de José Alves de Almeida, o Dois, o órfão que, depois de liberado, continuou trabalhando na Santa Albertina para o herdeiro, Renatinho: “Ele tinha tudo o que precisava, mandava e desmandava na fazenda. Seu Renato era muito bom, sempre dava roupa. Dinheiro que sobrava das compras.”O Dois vivia para cima e para baixo com o patrão. Seu Aloísio conta que José Alves chegou a estudar culinária no Rio de Janeiro depois de adulto, a mando da mãe de Renatinho, que “pegou ele pra criar”. “Ela levou o Dois pro Rio, ensinou a falar direito, escrever direito. Nós chamava ele de Zé Pretinho, porque ele era bem pretinho mesmo. O apelido pegou.” 
Segundo o filho de José Alves de Almeida, Reginaldo, o apelido de Zé Pretinho é mais antigo. A madre superiora do orfanato foi quem começou a chamá-lo assim. Ele o criou desde pequeno até quando o menino foi mandado para a fazenda. Dois, ao que tudo indica, não fazia parte da criteriosa escolha de Osvaldo Rocha Miranda. Foi enviado junto com os outros porque “fez malcriação” para as freiras. Era para ele “aprender a se comportar”. Ao partir, deixou no Rio a irmã Judith, que chorou dias a fio, na parte feminina do educandário, de saudade do irmão. Eles voltaram a se encontrar depois de décadas, quando Dois já se chamava José Alves de Almeida, o cozinheiro da família Rocha Miranda.
Nos anos 1930, órfãos eram escravizados em fazenda no interior de São Paulo por simpatizantes do nazismo: 
Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=v-K730tXMuY
Muito simpática, d. Diva é uma senhora de quase 80 anos, irmã da falecida d. Alice, cujo endereço profissional era a fazenda Retiro Feliz, propriedade de veraneio dos alemães Arndt von Bohlen Krupp e Annelise von Bohlen Krupp, mais conhecida como Madame. Antes da década de 1950, as terras pertenciam a Otávio Rocha Miranda, também membro da Ação Integralista Brasileira e irmão de Osvaldo e Sérgio. Arndt era um jovem da alta sociedade europeia, filho renegado de Alfried Krupp, um dos donos do conglomerado (indústria fabricante de aço) de empresas Krupp – conhecidas por produzirem armas de fogo utilizadas na Segunda Guerra. Coincidentemente, os Rocha Miranda tinham relações comerciais com essas empresas. Alfried, em 1948, foi condenado por exploração de mão de obra escrava na Alemanha.
Nas idas e vindas da memória, percebe-se que Campininha até hoje é marcada por vincos de silêncio sobre um passado incômodo. A opressão e a violência ainda se escondem dentro da parede maciça do esquecimento. Uma história suja, que começou a ser revelada por porcos. Quem saiu de lá, como Marujo, consegue revisitar o passado com menos rancor. Quem ficou, como seu Aloísio, tenta esconder as lembranças. Quando perguntado a respeito do momento mais marcante na fazenda, ele pensa, repensa e solta: “Sabe que… Nem triste, nem feliz. Para mim, aquele lugar nunca existiu.”
Saiba mais – Bibliografia: AGUILAR FILHO, Sidney. “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945). Tese de doutorado. Campinas, SP: [s.n.], 2011.

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